Certo dia fui chamada para atender um homem que se despedir da esposa. Ela estava internada em um leito na UTI e não pôde esperar para estar presente, em consciência, no encontro - em seu cérebro já haviam cessados os sinais de vida. Como alerta Freud, "nós nunca somos tão desamparadamente infelizes como quando perdemos um amor.*
Enquanto ele se esforçava para discernir os traços mais amados da esposa em meio ao emaranhado de aparelhos, o homem me perguntou: "ela está mesmo morta?"
"Sim", respondi.
Como quem está sob uma anestesia da linguagem, tornou a reformular a pergunta: "Disseram que o cérebro dela morreu. Realmente não tem mais jeito de ela estar viva?"
Respondi que, segundo a medicina, não havia mais jeito. Em abafado desespero, ele ainda insistiu: "então ela está morta?"
Reiterei afirmativamente… E o silêncio reinou enquanto as lágrimas nos seus olhos confessavam a percepção que sua mente custava a acreditar.
Me insensibilizou a resistência daquele homem diante da realidade da morte da pessoa escolhida para dividir duas décadas de sua vida. Naqueles momentos em que ele me consultava exasperadamente para confirmar se era real o que via, também desejava em suas últimas esperanças acreditar que tudo não passava de um sonho, um mal entendido, uma brincadeira da imaginação. Fernando Pessoa diz que "de sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos dispersos. "
Em tal cena, eu respondia afirmativamente às suas perguntas apontando que eu também estava ali, com ele, naquela realidade, em uma tentativa de dar bordas a esse sofrimento sem medidas, sem nome, sem possibilidade de uma compreensão absoluta. Lacan, acerca da angústia, nos lembra que ela "urge do momento em que o sujeito está suspenso entre um tempo em que ele não sabe mais onde está, em direção a um tempo onde ele será alguma coisa na qual jamais se poderá reencontrar."
Embora tentamos nos esquecer da morte enquanto caminhamos para o seu encontro, ela manifesta sua face diluída em todas as instâncias da nossa existência. Sêneca sabiamente aponta que "erramos em ver a morte à nossa frente, como um acontecimento futuro, enquanto grande parte dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte." Mas isso não muda o desafio: como encarar uma realidade na qual perdemos a possibilidade de viver um presente com a pessoa que amamos? quais as implicações desse tipo de perda em nosso ser?