"Tinham medo que ela gritasse e as portas das casas uma por uma se abrissem, raciocinou, eles não sabiam que não se grita. "
Quem já sentiu a violência na pele sabe que, em não raras situações, gritar não é uma opção. Em um mundo marcado por investidas dilacerantes contra o corpo alheio, ficar paralisado pode ser um modo de lidar com o real do desamparo escancarado pela violência.
Uma menina de dez anos sussurrava que não contou para os adultos que o Senhor que lhe dava doces e era bonzinho, Igual ao Papai Noel, também lhe pedia para fazer "coisas estranhas ". Disse também que se sentiria culpada Se ele fosse expulso da casa - Sempre o senhor apontava essa possibilidade enquanto lhe pedia segredo sobre ações que ela sequer entendia.
Como gritar por socorro e expor um momento de profunda humilhação, de destituição da própria humanidade? Ou não se grita justamente pela dificuldade em nomear tudo isso como violência? Poderia ser, também, amor? Uma banalidade? Um castigo?
No limiar da dúvida hesitante, surge a opção de ficar em silêncio esperando que tudo passe sem deixar marcas… Contudo, qual o preço que acabamos pagando por nosso silêncio? Shakespeare escreve que "o passado e o porvir estão, ambos, recobertos pelo pó e pelos amorfos escombros da desmembrando ".
Deslembrar as nossas marcas pode sinalizar para um outro que, caso venhamos a sofrer uma nova violência, repetiremos a velha reação de nos calar ou sermos calados. Esse sinal é, infelizmente, um perigoso atrator de pessoas perversas que buscam justamente a vulnerabilidade da vítima. E quão vulnerável é aquela ou aquele que, Além de ser o alvo do golpe, também não consegue mostrar a ferida!
Chegamos à amarga conclusão de que o silenciamento é um gatilho para a repetição da violência.
Goethe sugere um interessante caminho para "superar "as repetições: "Escrever a história é um modo de nos livrarmos do passado. " Mas quando esse passado é recente e aterrorizante demais para ser costurado com as linhas finas da escrita, é preciso recorrer à fala, ainda que em desespero e mal articulada. E ao grito, e ao choro… E a tudo aquilo que, na linguagem, é capaz de denunciar a ferida.
Ouso, pois, complementar a fala de Goethe: Expor a ferida é um modo de nos livrarmos desse outro que nos aprisiona ao passado.