Qual é o preço que estamos dispostos a pagar para bancar nosso desejo?
Sempre tive uma relação de amor com a leitura e a busca do saber. Sobre o poder do sentimento, Shakespeare já nos apresentou há alguns séculos que o amor acrescenta uma preciosa visão aos olhos.
Só que, na minha história, aprendi que muitas funções desempenhadas pelos órgãos do meu corpo não se alinhavam ao que meu desejo mirava. Por isso, produzir no meu próprio alinhamento orientado à leitura e aos estudos exigiu criar um modo de enxergar que ultrapassasse os olhos.
Conforme reitero quotidianamente às pessoas próximas, com gestos ou palavras, meus olhos são marcados por falhas das funções normais, devido ao glaucoma congênito, e meu desafio sempre foi criar outros “órgãos “ para compor a arte de enxergar: enxergar com a memória, com a lógica, com o tatu, com a escuta. Clarice Lispector nos conta que é necessário um grau de cegueira para ser capaz de enxergar determinadas coisas.
Quando criança, já comecei a desconfiar que não atingiria meu desejo pelo saber se apenas agisse de forma porosa ao que era emitido pelos métodos normais. O cenário: um quadro negro repleto de inscrições traduzidas vagarosamente por um professor. Era o símbolo da desorientação. Como traduzir a tradução? Isto é, como compreender bem uma fala que faz referência a um objeto visual de todo estranho para mim?
Nunca conseguia enxergar o que estava escrito na lousa das escolas e, ainda por cima, na vivência de uma época marcada pela escassez de impressoras e copiadoras, pela inexistência da internet e pela precariedade de métodos de ensino inclusivos. Parece um cenário sombrio e distante, mas é apenas a perspectiva de uma criança inserida na realidade de duas décadas atrás, em uma cidade do interior de Minas Gerais.
A alternativa, no estreito horizonte de possibilidades do interior, seria a transferência para a Apae, uma “escola especializada” para acolher os não-adaptados de todo tipo, mas onde - segundo informações que a mim chegavam - O aprofundamento dos conteúdos deixava muito a desejar em relação a uma escola regular. O medo de ser lançada em uma realidade onde a falta do saber me atingiria mais do que a falta da visão, fez com que eu optasse por esconder minha baixa visão.
Comecei a fingir que conseguia ler a distância, fingia também que estava copiando o conteúdo do quadro enquanto rabiscava frases e palavras aleatórias no caderno. Fui-me aperfeiçoando na arte do engodo e, ao cabo de alguns anos, simulava tão bem que acabei por acreditar em minha ficção na qual eu poderia enxergar como as outras pessoas. Como aponta Lacan, a verdade só pode ser dita nas malhas de uma ficção.
Mas e os professores? Eles bambeavam entre duas versões: essa menina finge que enxerga ou finge que não enxerga? Contudo as notas altas manifestavam que alguma coisa a menina podia ver. Assim, quedavam-se por satisfeitos e eu me sentia vitoriosa, aliviada.
Paguei o preço pelo meu desejo negando minha falta, minha marca, singularidade inscrita em meu corpo. Faz lembrar a personagem Mulan que, para substituir o pai lutando em uma guerra, negou seu corpo de mulher. Todos nós temos marcas, mas é que algumas pessoas carregam no corpo uma tal que se diferencia substancialmente, fica exposta e recebe um significado destacado na cultura.
Temos várias possibilidades de lidarmos com elas: negligenciá-las, recalcá-las, evidenciá-las, assumi-las, dentre infinitas outras. O método que utilizei, dá negação, foi um modo de me salvar e atingir meu desejo. Mas sinto que a era da negação se arrastou demais, ao ponto de culminar em um peso insustentável. Chega a hora de mudar a postura: do negar para o assumir, sentindo o peso dar lugar à leveza, à aceitação, e por que não ao orgulho? Encerro o relato com o dito pelo heterônimo Álvaro de Campos, um dos vários personagens que Fernando Pessoa criou para realizar sua ficção e ficcionalizar sua realidade: “sou um intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim.”